quinta-feira, 23 de maio de 2013

A Temporalidade do Inconsciente: O Après Coup (Parte 1)


                                   
     Jacques Lacan, foi um psicanalista francês que fez um insistente trabalho de releitura de Freud e de transmissão da psicanálise na segunda metade do século XX.
     Ele, Lacan, em seu texto Posição do Inconsciente no Congresso de Bonneval (1960, e retomado em 1964) esclarece e recorda, num parêntese, sobre o termo nachträglich escreve “que fomos o primeiro a extraí-lo do texto de Freud”.
     O Nachträglich de Freud foi traduzido (pois criticou, achou muito primária a tradução que havia deste termo ao francês) por Lacan com o termo Après coup e, só depois foi a sugestão de MDMagno para a tradução ao português no Seminário I de Lacan.

     Quando dizemos uma frase: por exemplo, “Seu pai...” e a interrompemos, não se sabe o que ela quer dizer. É só quando eu pronunciar a última palavra, é só no ponto final da frase, que o sentido vai ser possível, por retroação: “Seu pai morreu.”
     Assim também um livro, só ao seu término construímos inúmeras compreensões sobre ele. E, a morte de uma pessoa é que vai também fechar as significações da vida dela. Essa maneira de conhecermos algo só depois de algo mais acontecer, é o que chamamos o tempo do inconsciente, o só depois, o après coup. Enquanto estamos vivendo algo, não podemos ter ideia do que constitui, de compreender este ato. Um ato só é compreendido, e especialmente, em psicanálise, um ato, ou um fato, só é convertido em fato psíquico em uma segunda vez, que a constitui, como ato, ou fato psíquico.
     Ora vejamos o exemplo que o próprio Freud traz ao falar de Joãozinho, Juanito, ou pequeno Hanz, um dos seis grandes casos clínicos que trabalha em sua obra.
     Neste caso, Freud emprega o termo Nachträglichkeit que é um neologismo dele (no caso substantivou o termo Nachträglich, que é um adjetivo).
     Neste caso do Joãozinho, vemos que é “só depois” que Joãozinho pode se dar conta que...
                        Foi só num momento posterior à castração em si que Joãozinho se deu conta “das ordens e ameaças feitas na infância”. E Freud afirma que há casos de pacientes nos quais o intervalo entre o primeiro fato e esta contribuição, que como que constrói significação ao fato primeiro, pode chegar a muitas décadas.
     Transcrevo aqui Freud textualmente para podermos tomar como ponto de partida deste tema.

                        “Constituiria um dos processos mais típicos se a ameaça de castração produzisse um efeito adiado (nachträglich), e se agora, um ano e três meses depois, ele fosse oprimido pelo medo de ter de perder essa preciosa parte do seu eu. Em outros casos de doença podemos observar uma semelhante operação adiada (ou um semelhante efeito retardado ou ainda “retroativa”) (nachträgliche Wirkungen) de ordens e ameaças feitas na infância, casos nos quais o intervalo chega a cobrir várias décadas, ou até mais. Conheço até casos nos quais uma ‘obediência adiada’ (o sentido é de obediência  a posteriori , como se a obediência viesse a cumprir posteriormente uma ordem antiga) (“nachträcliche Gehorsam”) sob influência da repressão desempenhou um papel preponderante na determinação dos sintomas da enfermidade.
                        “A parcela de esclarecimento dado a Joãozinho, pouco tempo antes, quanto ao fato de que as mulheres não possuem ‘fazedor de pipi’ (como ele chamava) estava fadada a ter apenas um efeito destruidor sobre sua autoconfiança e a ter originado seu complexo de castração.  Por essa razão é que ele ofereceu resistência à informação, e pela mesma razão ela não produziu efeitos terapêuticos. Seria possível que houvesse seres vivos que não tivessem ‘fazedor de pipi’? Se assim fosse, não mais se poderia duvidar de que eles pudessem fazer desaparecer seu próprio pipi e, se assim fosse, transformá-lo em mulher!” 

(Análise de uma Fobia em um Menino de Cinco Anos -1909). (Os esclarecimentos dos termos em alemão estão no Dicionário Comentado do Alemão de Freud de Luiz Hanns – 1996).



quinta-feira, 2 de maio de 2013

A ruptura das ciências




3. A ruptura das ciências:
Ruptura é produto efeito de um trabalho teórico. O mecanismo da produção da ciência gera um distanciamento da realidade, há uma ruptura com a realidade. Cada vez que for produzido um conceito, um símbolo, vai acontecer esse distanciamento da experiência sensível.
Exemplo de ruptura: onde o sol nasce e onde ele se põe? Uma experiência diária, milenar. Olho o sol, reconheço sua existência como um astro celeste, mas se desconheço seu movimento real confundo seu movimento aparente, que percebo com os meus sentidos, com o movimento real. Utilizando apenas a percepção produzo uma teoria com a ilusão dos meus sentidos e digo: o sol nasce a leste e se põe a oeste. Hoje podemos dizer que essa é uma noção imaginária, porque já temos a teoria copernicana. Teoria revolucionária que nos ensina que a percepção dos nossos sentidos, o mais evidente, é precisamente ilusório.
Copérnico, com sua produção teórica, produziu uma ruptura com as teorias anteriores descentrando a terra do centro do universo.
      Esse conhecimento científico já a tempo conquistado segue sendo cotidianamente negado. Mesmo que tenhamos estudado a teoria heliocêntrica podemos ser enganados pela nossos sentidos e continuar afirmando que o sol nasce a leste e se põe a oeste, ou seja que o sol gira ao nosso redor. Essa é uma ilusão produzida pelos nossos dos sentidos. Sentidos que costumamos confiar quando dizemos “só vendo para crer”.  A certeza sensível produzida pelos sentidos, o que podemos dizer, ver, tocar, pensar conscientemente é onde se gera nossas ilusões e as noções pré-científicas.  Vemos a aparência, o sol girar ao redor da Terra.
Outras rupturas causadas por teorias foram as de Darwin ( o homem não é o centro da biologia, apenas um elo) e Marx ( produto das suas relações sociais). Cada um dos descentramento produz uma ferida narcísica na humanidade.
A psicanálise provoca outro descentramento quando coloca o conceito de inconsciente no centro da teoria sobre o psiquismo humano.

4. As Rupturas da psicanálise

A psicanálise produz três rupturas:
1) Ruptura  epistemológica. Na psicanálise a obra A Interpretação dos Sonhos funda o campo psicanalítico porque produz um objeto de conhecimento: o Inconsciente.
Até 1900 a consciência era o centro de todos os fenômenos psíquicos. As neuroses, principalmente a histeria, eram confundidas com um capricho ou uma produção orgânica que afetava não se sabia por que, os processos psíquicos. Nesse campo científico Freud modificou a técnica a pedido de uma paciente, Emmy que pediu: “por favor, deixe-me contar os sonhos.”
Essa mudança de posição, onde o paciente relata e Freud escuta o discurso, leva-o a descoberta do inconsciente  e a escrever a obra Interpretação dos Sonhos.  Aqui podemos constatar a importância da escrita na produção dessa nova ciência e a diferença de outros processos como os mágicos, religiosos e os ideológicos.
        A ruptura produzida ao tirara consciência do centro do psiquismo faz com que o “Penso, logo existo” de Descartes (1596- 1650) torna-se “Penso onde não sou”. O pensamento é inconsciente, um saber insabido pelo sujeito. Rompe com a idéia de ciência do homem e produz o conceito de sujeito do inconsciente.

O conceito de inconsciente costuma provocar resistências porque fere o Eu narcisista, por afirmar que o principal do sujeito é desconhecido por ele próprio e ainda mais que não tem sobre o mesmo nenhum controle dos seus efeitos no seu psiquismo, na sua vida, suas relações, suas escolhas, etc... 

        2) A segunda ruptura provocada pela psicanálise é no nível da filosofia das ciências. Na época de Freud as ciências naturais pensavam que se conhecêssemos todas as causas poderíamos determinar todos os efeitos. Era uma ciência de causas. A psicanálise inversamente parte dos efeitos, os produtos finais do trabalho inconsciente, ou seja, o sonho manifesto, o sonho contado pelo sonhante, a fala.  É uma questão temporal, parte do presente para o passado. Para a psicanálise, o passado não existe até que seja interpretado. O que fixa como material o passado são os fatos presentes. O que digo da minha infância é a infância que eu tive. Isso tem haver com o tempo do inconsciente, après coup traduzido ao português como “Só depois”.
   A psicanálise é uma ciência conjetural, ou seja, parte dos efeitos e produz as causas, como nos mostra Freud nessa citação:
“Temos que transformar o sonho manifesto no sonho latente e indicar como, na psique do sonhador, esse último tornou-se aquele. A primeira parte é uma tarefa prática, cabe à interpretação do sonho, necessita de uma técnica; a segunda é teórica, deve esclarecer o processo suposto do trabalho onírico e pode ser somente uma teoria. As duas, tanto a técnica da interpretação dos sonhos como a teoria do trabalho do sonho, têm de ser criadas."

         3) A terceira ruptura revela a importância da sexualidade na vida do sujeito. A partir da psicanálise já não se pode negar a importância da vida sexual nos humanos, do desejo sexual infantil reprimido. Entendendo por sexual algo muito interessante que é falar, quer dizer sexual para a psicanálise é tudo aquilo que é tocado pela palavra.
      A psicanálise é uma ciência transformadora, ao descentrar o sujeito abre novas possibilidades. O primeiro que teve que se transformar com a teoria psicanalítica foi Freud. Dizemos então que ele não é o pai da psicanálise, mas sim o primeiro filho. Nas palavras de Freud, em uma carta de 1923, diz:
“ Passei realmente grande parte da minha vida
trabalhando na desconstrução de minhas
próprias ilusões e nas das humanidade.”


Anelore Schuamnn
psicanalista
( A Psicanálise: Ruptura e abertura a um novo pensamento científico
parte 3 -  Seminário INICIAÇÃO À OBRA DE S. FREUD)